21 de jun. de 2005

Para a Bárbara

São Paulo, hoje.

Bárbara,

Tem tantas coisas que fizemos e ainda QUERO fazer com VOCÊ!!

Exemplos: andar na rua morrendo de rir. Chorar de fininho. Tomar café expresso quatro e meia da tarde de domingo. Reler uns pedaços de uns livros que já sei que são ótimos. Descobrir ótimos novos livros. Comer lentilha com bastante lingüiça na primeira hora do primeiro dia do ano-novo. Aprender a usar palitinho no lugar de garfo. Andar de ônibus, esquecidos, no último banco. Tomar injeção. Perguntar as horas sem estar muito aflito. Escolher as cores das coisas. Escrever os nomes na porta do banheiro. Tomar sorvete no frio. Tomar chá no calor. Tomar uma garrafa de vinho. Decidir de repente qualquer coisa e fazer antes de “arregar”. Tirar cravos. Espremer espinhas. Ficar bêbado de cair. Cair e levantar gargalhando. Comprar roupa. Lavar quintal. Fazer pizza. Esquecer a pizza no forno. Comer pizza queimada. Ver você desfilar de sapato novo. Ficar dentro do carro no lava-rápido, vendo o temporal de mentira. Ver você desfilar só de sapato. Ver você com todas as suas roupas. Decorar as que você mais gosta. Fazer palhaçada pra câmera de circuito interno do banco. Encontrar sua calcinha esquecida em algum lugar, tipo banheiro ou pé da cama, enroladinha nela mesma, fazendo um oito de pano. Acordar. Dormir. Ficar na fila. Tomar banho. Tomar Cebion. Jogar pega-vareta. Ficar pelado. Passar fim de ano, com contagem regressiva na televisão e rojão explodindo lá fora. Lavar o rosto numa bica. Ficar. Colocar água no filtro. Fazer xixi no bosque enquanto o outro vigia. Ver o que é igual. Ver o que é diferente. Segurar a cabeça do outro na hora do vômito. Pegar a mão e apertar e o outro apertar de volta. Deixar recado comprido na secretária eletrônica. Ver o outro onde o outro não consegue se ver. Ver o que o outro quer que a gente veja. Fazer uma lista de quem o outro parece. Contar pintas. Pentear os pelinhos. Ir pra praia. Deixar a água salgada bater no corpo, indo e vindo, sendo areia, sendo pedra, sendo mato. Comer negócios estranhos crus num restaurante japonês. Comprar remédio sexta a noite. Pedir. Ganhar. Levar. Levar uma, das boas. Estalar os dedos. Pôr a coluna no lugar. Mostrar uma coisa. Duvidar, mas porque se quer saber mais e mais. Trocar lâmpada. Consertar tomada. Tomar choque. Dar banho. Saber a história de cada cicatriz, de cada pelinha soltando, de cada unha quebrada. Arrotar sem querer. Assistir filmes bons. Sair no meio dos filmes que não interessam. Costurar um furinho. Pregar um botão. Imitar bicho. Tirar lixo. Recolher cabelos do ralo. Revirar no melado do lençol. Gastar pilha. Deixar bilhete. Deixar de lado. Experimentar cachimbo. Fazer careta com a boca cheia de pasta de dente. Cuidar do sono. Experimentar um refrigerante novo, horrível como drops derretido. Ter mais uma escova de dentes. Telefonar, contando até três pra que os dois desliguem ao mesmo tempo, mas nem assim. Ser cuidado de bandeja e toalhinha. Gostar do que você gosta. Apalpar depois de um pesadelo. Criar um bicho de estimação que fique doente de vez em quando, precisando de uma caixa de papelão, um cobertor bem gasto e atenção. Fritar ovo. Fritar pão. Fazer torrada. Tomar sopa. Cutucar todos os buraquinhos, secos e molhados. Contornar com a ponta dos dedos todas as partes macias, como quem desenha um mapa. Empurrar todas as partes duras, como quem segura uma coisa pra se defender. Soprar cisco. Tirar felpa. Pinçar ferrão. Puxar a cortina. Fechar a persiana. Matar formiga no chão da sala. Beijar o sovaco suado. Lamber a cara salgada. Beijar ossinho por ossinho que apareça por baixo da pele. Pedalar. Colocar band-aid. Enfaixar. Tossir. Espirrar. Viajar de avião. Morrer de medo. Ouvir um segredo, deixando ele sair com choro, devagar, por horas e horas. Torcer a cara ardida pro sol que nasce. Bocejar um bocejo puxando outro. Pisar na madeira macia das casas antigas. Comprar cadarço sábado cedo. Grudar retratos. Espetar retratos. Enquadrar retratos. Sentir cheiros. Pisar em poça d’água. Soltar pum. Habituar-se. Estranhar. Sofrer de saudade como rubéola em gente grande, quando não se pode mover um músculo sem aquela dor. Desembaraçar correntinhas. Fechar o zíper de um vestido. Abrir o zíper de vários vestidos, ouvindo a música desses barulhinhos. Copiar a assinatura. Acertar o relógio. Guardar lugar. Assistir jogo do Brasil na tevê. Apagar a tevê. Colecionar alguma porcaria. Ficar sem graça. Jogar fora. Guardar dentro. Procurar uma coisa besta, como uma chave ou um documento. Ser encontrado por um troço importante. Misturar toalhas, sentindo as úmidas cheirosas. Buscar um copo d’água nem quente nem gelada no meio da noite. Fazer. Ser feito. Passar roupa. Lavar tênis. Perder as meias. Ver onde dói. Fuçar onde é bom. Dançar com o mesmo passo mas sentindo que ficou melhor. Ver dançar, estranhando a cintura conhecida. Ouvir música sem letra. Ouvir você chegar. Chegar. Curar soluço. Chorar por causa. Preencher cheque. Ficar chique. Ficar de qualquer jeito, tipo pijama e chinelo. Gastar uma caixa de fósforo, só acendendo por acender, vendo o jeito especial como queima cada palito. Ler bula. Bestar. Bundar. Subir de escada. Descer a rampa. Tentar aprender gaita. Desistir logo. Pensar que um troço é uma coisa tão importante, depois notar que ela não vale bosta nenhuma. Mudar móveis de lugar, descobrindo uma nova casa na casa velha. Se enfeitar com papel higiênico. Passar cola na mão e depois ficar tirando fiapo encardido. Estudar e aprender de verdade o que for de verdade. Embrulhar presentes. Comer uma melancia inteirinha babando suco e caroço. Pôr a mesa. Fazer feira. Fazer de conta. Fazer as contas. Tirar a mesa. Fazer excursão de barco. Ficar enjoado de barco. Depois não. Usar o mesmo rádio relógio na rádio esganiçada de acordar. Sair do ar. Cantar desafinado uma música pro outro lembrar. Passar creme. Passar pomada. Passar o tempo. Passar vergonha. Se achar o máximo. Responder na hora. Parar pra pensar. Pensar andando. Não saber responder e não inventar por isso e nada mais que isso. Pôr dedo no nó. Pôr dedo na ferida. Deixar a casquinha cair. Tirar espinha de peixe. Contar sonho. Contar pesadelo. Arrumar gaveta. Pintar parede. Envernizar cadeira. Pichar a porta da geladeira. Comer em churrasquinho rodízio e ficar jiboiando a tarde inteira. Trocar pneu. Trocar bujão de gás. Olhar pras fotos dos documentos e rir delas como se ri de uma piada velha. Comer coxinha de posto de gasolina a duzentos quilômetros de casa. Tomar sal de fruta deixando fazer cócegas no nariz. Plantar hera num vasinho e a coisa dar certo como espuma verde. Comprar caneca. Ouvir estômago roncar antes e depois das refeições. Entender de computador. Decifrar manual de forno de micro ondas. Sugerir. Brincar de mordomo e madame. De pega-pega pegando-pegando. Comprar peru pra temperar. Comentar revista de sacanagem e ficar conversando tipo “Olha que pintão!” ou “Nossa, o que eles tão fazendo!”. Cortar cabelo. Dar e levar uma bronca. Descascar mexerica. Descascar o abacaxi (e fazer suco). Levar jornal velho no lixo reciclável. Matar barata esmagada no ladrilho do banheiro no meio da gritaria. Conferir se as portas e as janelas estão fechadas por dentro. Usar óculos escuros. Se trancar sete dias. Cochilar no sofá. Tirar caca do nariz. Cortar unha encravada com tesourinha pequena assim. Assistir videoclipe alemão. Tirar fotografia. Gravar fita. Comprar CD. Deitar na barriga. Deitar na bunda. Reparar. Sair escolhendo o caminho enquanto se vai indo. Congelar comida. Perder a hora. Ganhar tempo. Esperar. Esquecer. Lembrar. Sentar junto debaixo de uma árvore, levandar de pau duro e (opa-opa!) ter que sentar de novo. Tomar no mesmo copo. Comer no mesmo prato. Falar a mesma língua. Se cortar com caco de vidro e correr pro hospital. Gritar contra o vento, com o grito voltando pra boca do outro. Beijar de língua até doer no músculo da bochecha. Combinar. Lavar louça com reggae no último volume. Passar a mão. Apertar. Esfregar. Beliscar. Morder. Chupar...

Viver.

Quer dizer: ir morrendo o pouquinho que se morre a cada dia, sem se preocupar com nada, sem virar um idiota, sem querer ser mais do que se é, sem querer saber o que se é antes de ser, pelo menos.

Ficar com você.

Depois ir ficando...

E ficar mais um pouco de novo...sempre.

Assinado:

Eu.

PS.: Texto do autor Fernando Bonassi, tão sensacional que resolvi copiar e postar aqui, claro, adaptado a minha realidade de vida tão feliz quanto a simplicidade e riqueza do texto.